Malandragem Brasileira
Anteontem testemunhei algo deveras desagradável, que poderia ter sido bem pior. Estava na Sala do Acervo da Faculdade de Direito ( a FDUC não tem propriamente uma biblioteca, mas um acervo onde se requisitam os livros desejados. E sim, eu freqüento o acervo mesmo nas férias), pesquisando por uns livros para um trabalho quando dois alunos brasileiros (certamente do Mestrado) pediram uns livros que o bibliotecário não encontrava. Foi então que ele entendeu o que se passava e a história se desenrrolou.
Ele descobriu que os livros requisitados o tinham sido já antes por alunos brasileiros, que haviam voltado para o Brasil - não sei se definitivamente - com as referidas obras. O sujeito, normalmente atencioso e mesmo simpático, ficou furioso e descarregou sua indignação. Disse ser um absurdo os portugueses pagarem impostos para sustentar a Universidade (a UC é uma universidade pública) para que os estudantes brasileiros se apropriassem dos livros dela. "Eles estão lesando o Estado!", bradou. E seguiu recriminando a atitude, onde estrangeiros (brasileiros) tomavam bens públicos portugueses para si próprios e a coisa ficava por isso mesmo. Disse que já se tentou contactar esse pessoal para que devolvessem os livros, mas que era muito difícil conseguir algo, ou mesmo que reaver tais livros é praticamente impossível, não me lembro bem.
Ele não me tratou mal por causa do ocorrido, mas fiquei ali com uma imensa vergonha. Vergonha pelos meus compatriotas. Por que fizeram isso? Por que coisas assim têm de ocorrer? Será tão difícil para esses alunos terem pelo menos um pouco de ética, de uma noção clara do que é certo ou errado fazer? Será mesmo que pretendem minorar sua estupidez devolvendo os livros estraviados, junto a um pedido de desculpas?
Não há sentimento nacionalista ou bairrismo algum que me faça negar a razão da revolta do bibliotecário. Ele está certo, ponto final. E isso porque consigo com certa facilidade colocar-me na mesma posição dele. Afinal, qual seria a reacção de um bibliotecário brasileiro que visse livros da biblioteca em que trabalha serem extraviados para Portugal por estudantes portugueses, livros esses que dificilmente serão recuperados? Sem a menor dúvida ficaria revoltado e diria cobras e lagartos desses estudantes lusos. E estaria certo, pois ninguém, estrangeiro ou não, tem o direito de se apoderar de bens públicos como se fossem bens livres, que qualquer um pode pegar e dele apossar- se.
O facto de serem estrangeiros, aliás, pelo menos do ponto de vista ético, parecem-me agravantes da actitude, pois sugerem que o usurpador (sim, esse é o termo correcto) contava com a distância geográfica e com a diversidade de jurisdição para que seu acto não tivesse maiores conseqüências, compreendendo aí, especialmente, as conseqüências de ordem jurídico-criminal. Digo mesmo que não duvido que esses estudantes usurpadores tenham pensado " E daí? Estarei no Brasil, não vai me acontecer nada". Uns podem mesmo ter dito isso em voz alta para seus colegas.
Mas algo ainda há nessa história toda: a imagem dos brasileiros em Portugal. Pode parecer "colectivismo", "tribalismo" da minha parte, mas é a mais pura verdade. Não há argumento ou chavão que mude o facto de que o que alguns estrangeiros fazem no país que os acolhe repercute sobre seus demais compatriotas, sejam tais actos bons ou maus. E noto que entre os brasileiros há um bom interesse na imagem que se faz do Brasil no exterior. Já vi isso em conversas com brasileiros residentes em vários lugares, e os que ficam no Brasil frequentemente perguntam-me "qual a imagem do Brasil aí?".
Aí é que está: que "imagem do Brasil" estão produzindo esses brasileiros? Resposta: a imagem de desonestos, ladrões, usurpadores de bens públicos, gente sem carácter. Que tal? Gostaram disso? É assim que querem ser conhecidos no estrangeiro? Será que já não basta, por exemplo, o facto de que alguns senhorios de Coimbra não mais arrendarem casas para estudantes ou trabalhadores brasileiros em virtude de já terem sido enganados por brasileiros antes? Ou o assalto-sequestro à agência do BES em Campolide? Será que logo veremos manifestações anti-brasileiras pelas cidades portuguesas?
Eu não sei a resposta para essas questões. O que sei é que isso mexeu muito comigo, e muito negativamente. Sei também que, embora não tenha sentido na pele nenhuma hostilidade dos portugueses contra mim, por esses dias eu não ando pelas ruas com a camisa (camisola) canarinho nem à pau.
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